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Bandeira Branca


Estação de ski

Alguns fatos marcaram esse meu terceiro inverno nestes tempos sabáticos. Em resumo, eu posso dizer que eu hastei uma bandeira branca e pedi paz para muitas coisas, que talvez eu não goste, não compreenda, ou que antes eu sequer tolerasse. Mas, sobretudo, foi uma temporada em que eu aprendi a lidar com limites e diferenças.


O meu primeiro pedido de reconciliação e respeito foi com a neve. O certo é que cada um conta a sua própria história conforme melhor lhe convém; e eu sempre escondi de mim mesma esse sentimento de repúdio que eu tinha em relação à neve, até porque seria cruel demais remar contra a maré. Mas, após algumas visitas às estações de esqui (St. Anton, Zurs, Lech – na Áustria – e Saas Fee, Les Crosets e Zermatt – na Suíça), depois de ouvir várias exclamações do tipo “Oh... Isso parece um conto de fadas!”, eu resolvi tirar a máscara: eu não gosto da neve. Esse sentimento atroz surgiu há exatos 10 anos, porque a neve chegou num dia de março que foi terrível para mim. Um dia em que eu desejei que tudo tivesse acontecido de forma diferente, e que não poderia ter nevado; mas nevou muito, aliás, nevou até dentro de mim.




Depois desse fato de 10 anos atrás, vieram inúmeras tentativas de camaradagens mútuas... Eu peguei gôndolas e “butt-lifts”, subi as montanhas, moldei bonecos de neve, fiz refeições com vistas belíssimas, prendi meus pés e pernas em botas de ski, carreguei skis e “poles” nos ombros para cima e para baixo, vesti roupas coloridas e quentinhas, me escondi em meio à capacetes, luvas, gorros, óculos polarizados, visitei estações de ski e fiz aulas...


Mas, nada superou o meu estranhamento. Em todas essas ocasiões, eu me sentia amordaçada, sufocada por todas aquelas regras, meu cérebro ficava estafado por ter que ficar me guiando entre aquelas posições para não cair, para virar à direita e à esquerda, por ter que dizer que eu tinha entendido quando eu não tinha a menor ideia do que estava fazendo... Não havia recompensas por tudo aquilo, ou não havia endorfina suficiente para me dar sensação de bem-estar no final das aulas de ski. Só ficava a exasperação, a sensação de que era tudo em vão.



Então, esse ano eu me liberei das aulas de ski e me desobriguei daquela comoção de ter que achar que todo aquele universo é formidável. Isso não me impediu de ir para as estações de inverno nos Alpes, de levar as crianças para as aulas de ski, de motivá-las com as descobertas, de ficar um tempão lá toda aparelhada para aguentar o frio apenas para tirar uma foto ou filmar um salto. Mas, eu fiz tudo isso pela vida em grupo. Por mim, eu estava muito bem ali no hotel, cercada por um livro, escrevendo, tomando um capuccino, vendo o riacho correndo entre as pedras e a neve: meu silêncio e meu tempo. Didier e Didier Pai entenderam minha decisão, houve respeito e reciprocidade. Petite, entorpecida pela alvura e fofura da neve, achou minha atitude incompreensível. Paciência, não é fácil mesmo de me decifrar.




Matterhorn, em Zermatt, também ficou me olhando de soslaio:


“— É verdade isso? Você vai ficar aí escrevendo, me encarando pela janela, enquanto a multidão me acolhe em selfies?

— Matternhorn, você tirou a sorte grande! Você já é o logo do chocolate e da bala... a publicidade se encarregou do seu misticismo, não ligue para mim... já que nem todo o açúcar do mundo é capaz de me adoçar, não será um chocolate ou um bala que irão me convencer, não é?”.


Houve um pensamento que não me largou durante essas temporadas de inverno: você não pode compreender a alma da Suíça se você não subir as montanhas e não experimentar o que o inverno tem a oferecer. Talvez, por isso, eu insisti comigo mesma por um tempo. “Ora! Não dá para dizer, se você não se aventurar!”. Agora, eu me sinto livre para relatar: eu observei, e não me identifiquei. Mas, até chegar a isso foi uma longa jornada interna, que me fez sentir, mais uma vez, aquela estranha no ninho. Depois, veio a paz, no último dia antes de voltar para casa, após quase dez dias em Saas-Fee, eu decidi caminhar um pouco sozinha entre as ruelas, onde só circulam carros elétricos minúsculos, entre os “after-ski bars”, entre as lojinhas de souvenirs, entre as botas e capacetes que percorriam os caminhos, e nós – eu e a neve – murmuramos entre si:


“— Tudo bem neve, eu não fui tão festiva com você, mas você me tolerou. Eu não te desvendei, mas você também não me devorou. Façamos uma trégua?

— Sim, siga serena. Eu estarei sempre aqui, se você assim o quiser”.



Também, em meio a esse período, houve outro ritual de passagem: o “Fasnacht”. Eu me cobrava desde que havia chegado por aqui: era preciso vivenciar o espírito do carnaval de Lilliput! Mas, nos anos anteriores sempre houve um acontecimento ou outro, ou estava esquiando (em 2017 – Saas Fee), ou estava explorando outros arredores (em 2018 – África do Sul e Augusta Raurica).


Mas, o problema é que os relatos não me chegavam muito animadores, eu tinha lido e ouvido tantos “don’t” – como não vá fantasiado, pois você não deve concorrer com os “waggis” e ‘alti dante”; não deixe de colocar os protetores auditivos nas crianças; não deixe de portar o seu broche para mostrar que você contribuiu com a festa senão vão te entupir de confete; não dance, só observe; não deixe as crianças pegarem o confete que caiu no chão e re-utilizarem – que o amontoado de regras e excentricidades me levava sempre a desistir. Até que, este ano, eu bati no peito: vamos provar! Até mesmo porque, eu não tinha muito como fugir, pois eu estava no meio da convulsão melancólica quando minha aula de alemão terminou.


Era uma tarde de sol e tempo ameno, coisa muito rara nesta época do ano. Peguei as crianças, com o cuidado de não colocá-las fantasiadas, prendemos nosso broches (“blaggedde”) bem visíveis, e começamos a percorrer as ruas centrais, que já estavam transbordando com uma multidão atenta e que observava os “cliques” com suas flautas e tambores, e mirava os personagens lúdicos da festa. Eu me senti transportada para o passado, havia a atmosfera melancólica das músicas com arranjos de flautas, do harlequin e do pierrot. Mas, acima de tudo, eu me senti segura, foi possível caminhar; ir e voltar; parar; literalmente ver a bandinha passar, sem tumulto, sem empurrões, sem sobressaltos.



Não havia aquele clima de exasperação, de exaltação, de empolgação – que são tão comuns no carnaval brasileiro. Semanas antes, eu havia feito uma apresentação na classe de Petite a respeito desta festa brasileira, e eu havia me esforçado para mostrar com elogio o melhor da alma brasileira, enaltecendo nossa cultura, música e espírito alegre. Mas, ao final da exposição, enquanto as crianças ainda estavam extasiadas com o colorido das fantasias, com o ritmo do samba e do axé, uma das professoras me perguntou com brilho no olhar: “E você já participou do carnaval no Rio e na Bahia quantas vezes?”. Confusa, eu respondi com franqueza: “Nenhuma vez”.


Eu ainda tentei consertar, dizendo que a euforia geral existia em toda e qualquer cidade, que não era preciso viajar para sentir o arrebatamento da multidão que eu havia mostrado nas fotos. Mas, definitivamente, eu já estava desacreditada. Nem a minha foto de criança, em que eu estava vestida com uma roupa de frevo, com braços ao alto e sorriso largo, seria capaz de retomar a confiança de que eu seria uma carnavalesca de verdade, ou de que eu colocaria minha sandália de prata para sambar todos os anos.


Entretanto, no “Fasnacht” foi tudo diferente, existia acolhimento, tranquilidade, não era preciso demonstrar uma felicidade plastificada: isso tudo aquietou meu coração. Ao mesmo tempo, foi muito encantador ver as pessoas fantasiadas distribuindo docinhos e pequenos brinquedos para Didier e Petite – eles ficaram maravilhados com a gratidão dos desconhecidos; e eu até ganhei um botão de rosa de um “waggi”, que primeiro havia jogado confete me mim. Mas, Didier logo se aborreceu com aquela falta de entusiasmo visceral e pediu para ir para casa. Eu concordei e, sem pressa, seguimos nosso caminho de volta. Mas, com aquele botão de rosa, eu selei a minha paz também com o “Fasnacht”, e cochichamos:


“— Seu cortejo lúgubre costumava me afastar, seus infindáveis preceitos pareciam me atar. Mas, você me aceitou, apesar de todas as nossas diferenças. Eu quieta, você tristonho... e aqui estamos. Chegamos ao armistício, então?

— Sim, afinal, eu sou casmurro e você também”.


E, antes de tudo isso, no começo de janeiro, houve também um outro expurgo mental, e eu decidi abandonar o meu adorável curso de francês e iniciar um curso de alemão. Parece bem insano que no meu terceiro e último ano sabático eu comece, finalmente, a estudar a língua do local onde eu moro. Sim, tantas coisas são desarrazoadas...


Mas, eu coloquei de lado a minha devoção pelo francês em nome de um bem maior porque, no fim das contas, era preciso saber uma meia dúzia de palavras e regras gramaticais para ajudar na tarefa de Petite e Didier; e o tradutor online ou o cérebro eletrônico já não dava conta de tanto ritmo, sonoridade, cor e vida que emanava dos livros infantis. Então, eu arregacei as mangas e mergulhei, e por hora tenho estado satisfeita, talvez, porque nada melhor do que aprender alemão com uma famigerada, grisalha e inóspita professora suíça. A língua alemã foi outro “basilisk” que ouviu meu canto de paz:


“— Você sabe que eu te rejeitei desde sempre, talvez, porque eu não quisesse te compreender, não suportasse te ouvir... Mas, você soube esperar, num canto escuro, até que o meu descaso cedesse. Você releva a minha indolência?

— Ganz genau! Quem sou eu para contra argumentar com que estudou clemência?”


A trilha sonora dessa reflexão é “Bandeira Branca”, na voz de Dalva de Oliveira, é claro. Afinal, eu não podia mais viver sem pedir paz à certas coisas...



Mas, também é “Waterloo”, do Abba, que eu ouvi de um dos “cliques” que estava tocando em Saas Fee, até porque todas as aceitações são feitas de perdas e ganhos: “So how could I ever refuse/ I feel like I win when I lose/ Waterloo couldn’t escape if I wanted to”.



E, certamente, minha reconciliação com o Fasnacht se deve, em muito, pelo fato de ter ouvido um grupo de “gugge music”. Eles estavam fantasiados de centuriões romanos, o maestro vestia uma máscara moldada (“larve”) de um “Júlio Cesar”enfurecido e, posicionados em frente a um pub, tocavam “Demons” do Imagine Dragons, num arranjo à moda do “Fasnacht”: “When you feel my heat/ Look into my eyes/ It’s where my demons hide/ It’s where my demons hide/ Don’t get too close/ It’s dark inside”.


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