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Duas Áfricas do Sul e uma Viagem Interior


Planície na África do Sul

Levou um tempo até que eu resolvesse parar um pouco e refletisse sobre o que a viagem à África do Sul significou para mim. Foi aquele tipo de viagem que eu esperava muito, que pudesse me transformar mas, ao final, hoje eu penso que a experiência serviu para me dizer que ainda há muito o que ser feito, e que o “... e foram felizes para sempre” continua mesmo sendo verdade apenas nos contos de fada.

A razão para essa minha decepção? Há 11 anos atrás, quando eu defendi minha tese de doutorado, o exemplo da África do Sul era imbatível: a justiça de transição no seu estado puro, repleta de medidas exitosas por todos os lados, o perdão que levava à reconciliação! Era como se “o fim da história”, em termos de transição e superação das atrocidades passadas, estivesse sendo cravado ali, nos anos noventa, no mesmo continente que viu o homem surgir. Em 2007, eu estava convicta de que a Comissão de Verdade e Reconciliação da África do Sul havia curado todas as feridas.

Mas, então, se as feridas estavam cicatrizadas, o que eu poderia esperar em 2018? Um admirável mundo novo, certo? Bem, foi com esse espírito que eu aterrisei em Cape Town, em fevereiro desse ano. E, dez ou doze dias depois... uma interrogação brutal pesava sob a minha cabeça. Se eu fosse uma criança, isso representaria a descoberta de que Papai Noel não existe, e que o bom velhinho de bochechas rosadas não passava de um homem qualquer.

Parecia mesmo que tudo havia convergido para que eu descobrisse o mundo real; a começar porque eu decidi participar de uma conferência na última hora, e já não havia mais quartos disponíveis no hotel do evento, e tive que me virar para achar um flat para alugar bem no centro da cidade – estava, portanto, fora da bolha de proteção aos turistas estrangeiros. A proprietária do flat, quando soube que eu viajaria sozinha, ficou tão reticente de me deixar pegar um táxi no aeroporto, que resolveu me oferecer o “serviço de leva e traz” no combo do aluguel.

No caminho até o flat, além de me mostrar, ao longe, a Table Mountain, ela também me deu inúmeros conselhos para que eu não caminhasse na rua após o anoitecer, não usasse jóias, andasse com a bolsa bem junto de mim – enfim, era um “de volta para o passado” para quem já havia morado quase 20 anos em São Paulo e estudado na região da Praça da Sé. Tudo isso, porque até então ela achava que eu era suíça... quando eu falei que era brasileira, ela respirou aliviada, como se eu entendesse toda aquela atmosfera de desigualdade social.

Acontece que, por mais brasileiro que fosse o meu sangue, eu estava numa redoma de vidro há quase 2 anos, e me surpreendi, sim, com muita coisa que eu vi. Era como se eu tivesse um memória seletiva, e meu cérebro houvesse engavetado muitas das opressões que, antes eu já havia presenciado na minha própria terra.

Naquela tarde quente de verão em que eu cheguei, logo de início, eu já senti que a “terra prometida” não passava sequer por ali: a proprietária do flat – pequena, de pele alva, com cabelo curto, liso e escuro e de olhos azuis quase transparentes – dava ordens à uma camareira – de mãos gigantes, obesa, com lenço branco amarrado no cabelo e de pele negra.

Depois – enquanto eu caminhava na rua em busca de uma loja de conveniência para comprar itens para o meu jantar e café da manhã – observei os efeitos dos extremos sociais: vendedores ambulantes abordando quem andava entre as barraquinhas, pessoas carregando placas amarradas aos seus corpos, onde se lia “compro e vendo ouro e diamantes”, tudo, bem à frente de uma das lojas de departamentos mais famosas do país (a Woolworths), cujo interior era um universo paralelo de luzes, perfumes, moda e refinamento. No subsolo da mesma loja encontrei um mercado gourmet com produtos requintados e abudantes, só um item, porém, era de consumo controlado: garrafas de água.

V&A Waterfront Cape Town

Sim, eu cheguei em Cape Town em plena seca e com um racionamento de água tão severo que era muito comum que, a fim de evitar o desperdício de água, os restaurantes dentro do shopping center (V&A Waterfront) fechassem seus banheiros. Assim, se você realmente precisasse ir ao toilete teria que sair daquele ambiente e se dirigir aos banheiros públicos do shopping e, uma vez lá, existiam cartazes, ao lado dos vasos sanitários, para que você pensasse duas vezes se haveria a necessidade de usar a descarga.

Toda a população estava apreensiva com isso, e a escassez e o “Day Zero” foram assuntos recorrentes nos bate-papos durante as pausas para o café e almoços ao longo de toda a conferência. Haviam muitos outdoors pela cidade motivando as pessoas à economizarem água, caso contrário, chegaríamos ao “dia D” em que não haveria mais água nos reservatórios. Eu me questionei e me senti mal por estar fazendo turismo exatamente naquele período pois, em verdade, eu estava consumindo a água de um local que não tinha outra opção a não ser estar ali e enfrentar a secura.

Eu estava bem apreensiva, tanto que, no meu segundo dia de viagem, não quis nem me atrever a pegar um transporte público, e resolvi ir à pé até o local da conferência que, olhando pelo mapa, estaria há uns 20 minutos de onde eu estava. Um dos motivos da opção pela caminhada foi que, ao longo do percurso, eu passaria em frente ao Parlamento, bem no dia em que se reiniciaria a sessão legislativa após a pausa de verão. No dia anterior, eu havia lido que a situação de Zuma como Primeiro-Ministro estava ficando cada vez mais insustentável devido aos inúmeros casos de corrupção que ele enfrentava, e que ele estaria sendo bastante pressionado à renunciar...

E isso, de fato, ocorreu alguns dias depois, enquanto eu ainda estava em Cape Town. O que me impressionou foi a forma pacífica como isso se deu. Nós estávamos num táxi quando ouvimos a notícia pelo rádio, olhei pela janela do carro, observei as pessoas que transitavam no caos urbano e, não havia nenhuma manifestação, seja de apoio ou de contrariedade, o próprio taxista encarou aquilo com naturalidade. Dias depois, enquanto eu vasculhava livros numa livraria junto ao V&A Waterfront, me chamou a atenção a quantidade de livros que haviam sobre a corrupção arraigada ao governo da ANC (African National Congress). Penso que, para isso, ou seja, para essa transparência, liberdade de escrita e de pensamento, o processo de aprendizado da transição e do fim do apartheid deva ter contribuído.

Mas, a experiência na África do Sul não foi só acadêmica: quando o congresso acabou, no dia seguinte, eu corri para o aeroporto a fim de me juntar à família e à uma amiga, e viver naquele país uns dias de turista. E, então, fizemos todas aquelas atividades típicas. Seguimos para um game reserve, como são chamados os locais dos safaris, e passamos três noites por lá, alojados numa cabana – com algo entre o rústico e o aconchegante, cujo principal encanto para mim foi o chuveiro sem telhado: banho de água quente sob as estrelas e com a luz só do luar.

Os safaris ocorriam às 6 horas da manhã e às 4 horas da tarde e, por incrível que pareça, para mim não havia desânimo nenhum, apesar da experiência de madrugar, enfrentar o frio do amanhecer apenas com um xícara de café no estômago, aguentar os solavancos do caminhão, enfim, nada retirava aquela instigação pelo desconhecido (se bem que é uma aventura bem calculada e dosada).

E, diante daquela magnitude indomável, ficou tão claro para mim que o homem sempre foi e continua sendo o mais selvagem de todos eles: havia, no topo das montanhas e nos cantos esquivos entre os arbustos, vários jipes com vigias todos armados, porque mesmo dentro de uma reserva ambiental, e até os dias de hoje, caçadores de rinocerontes costumam entrar para capturar suas presas. Em suma, nós éramos e continuamos sendo os intrusos, os ladinos, os curiosos, os perturbadores da perenidade.

Antes do início do safari sempre existe um sermão da montanha sobre os “don’t” – um deles é o de jamais encarar os leões – e eu expliquei isso à Petite e à Didier com todas as letras. Mas, como tinha que ser, Petite, do alto da sua sabedoria, resolveu experimentar, e cravou os olhos numa leoa que estava sentada à sobra e próxima do seu bando. Foi atroz: Petite me puxou pelo braço e articulou um lento e comedido “ma-mãe”. Naquele instante, eu não me contive, e aconteceu aquela triangulação de olhares: éramos três fêmeas nos desafiando numa hipnose coletiva... até que eu e Petite cedemos e nos dignamos a abaixar nossas cabeças. Até agora, eu idealizo aquele instigador “olhar de leoa” para que, diante de uma dificuldade, eu pudesse ter aquele menosprezo interior e silencioso e, sussurasse: “Eu pularia no seu pescoço agora, se eu quisesse. Sorte sua, hoje não, minhas vísceras não doem de fome, então, você vive”.

Como turista, eu também visitei Robben Island – a ilha prisão onde Mandela e muitos outros opositores do apartheid ficaram presos. Era para ser “another day in paradise” da rota turística: acordar cedo, tomar café correndo, enfrentar fila, pegar um barco cheio, ter um pouco de enjôo por causa das ondas, se deparar com um sol escaldante, estar rodeada por inúmeras nacionalidades, deixar a prosa correr solta, pegar um ônibus, ver prédios arruinados, respirar poeira, transpirar, fitar o que restou da pedreira – mas, então, veio o encantamento...

Entramos numa sala ampla, apenas rodeada por bancos de madeira e vidraças altas e gradeadas, um senhor negro entrou, robusto, ele vestia uniforme azul e estava arqueado pela velhice, e principiou à falar como era a rotina dos presos na cadeia: a solidão, as privações, os trabalhos forçados, as incertezas, os medos, as torturas, os ideais de vida ceifados, a possibilidade de reconciliar-se com um passado violento – enfim, temas que permeiam muitos assuntos do meu interesse – e, então, mostrou um cartaz em tamanho ampliado onde estava uma espécie de ficha cadastral com uma foto 3x4, a inscrição “preso político” com uma numeração e, disse: “esse número sou eu, eu fui um preso político em Robben Island e sobrevivi”.

Foi impactante para mim ver a história corporificada em alguém – uma proposição de direito à verdade e de truth telling sensacionais, que deveria ser replicada em muitos outros exemplos no mundo. Esse senhor, combalido pelo tempo, ainda teve energia para acompanhar nosso grupo pelos corredores da prisão, pelas celas e, seguiu descrevendo realidades que, muitas vezes, insistem em não serem ouvidas. Ao final, na saída do prédio, ele ficou se despedindo de cada um de nós (éramos um grupo de umas 30 pessoas); eu não me contive, segurei a mão dele com as minhas duas mãos calorosamente apertadas, olhei nos olhos dele e, murmurei um “obrigado pelo que você nos fez hoje”, ele sorriu timidamente como se me dissesse um “não foi grande coisa”.

Teve também o momento estranho nesse passeio, estávamos entrando no ônibus que circulava a ilha, quando um homem branco com idade avançada também adentrou carregando um livro e começou a fazer um discurso – ele estava divulgando o livro que ele acabara de lançar (“Mandela: My Prisoner, My Friend”, de Christo Brand e Barbara Jones ), um espécie de autobiografia que relatava como ele, um jovem policial de Roben Island, tinha conhecido Mandela, e como essa convivência havia se tornado uma amizade e transformado a sua trajetória pessoal. As pessoas dentro do ônibus ficaram um pouco receosas e incomodadas com essa intromissão – mas, para mim foi mais um exemplo nítido de como os ideais de Mandela realmente chacoalharam o tecido social daquele país; apesar de que ainda persista muita desigualdade e intolerância, e o trabalho pareça ser interminável.

Depois disso vieram muitas outras coisas: teleférico para a Table Mountain, que estava coberta de nuvens e turistas vorazes; observação em Boulders Beach (Simon’s Town), onde havia mais banhistas do que penguins selvagens e livres; visita ao Cabo da Boa Esperança, que realmente era tudo aquilo que Camões descrevera, pois olhando do penhasco lá para baixo, entre nevoeiros que dançavam entre as ondas, era como se Adamastor estivesse lá a entoar o repetido soneto da minha juventude: “...Naufrágios, perdições de toda a sorte,/ Que o menor mal de todos seja a morte/... Eu sou aquele oculto e grande cabo/ A quem chamais vós outros Tormentório” (Luís Vaz de Camões, Os Lusíadas, Canto V, excerto do episódio de Adamastor).

Terminei a viagem com o sentimento de que aquilo tudo seria apenas o começo. A África clama por mais e mais, por aprofundamento e por reflexão. Não era só o meu olhar, Didier e Petite também me interrogavam em silêncio: “Haverão outras vezes?”.

Voltei para casa, assisti ao filme do Mandela (“Mandela: Long Walk to Freedom”, 2013), li um livro sobre acontecimentos recentes e recortes históricos (“The Café on de Move-on Blues. In Search of the New South Africa”, de Christopher Hope, editora Atlantic Books, 2018), me desdobrei para escrever o artigo que havia apresentando no congresso em co-autoria, enfim, mergulhei verdadeiramente e, talvez por isso mesmo, é que foi tão demorado para escrever essa passagem... Era preciso de um certo tempo e espaço para eu compreendesse aquela própria experiência pessoal, pois a minha viagem interna havia sido bem maior do que os poucos dias em que havia percorrido aquele lugar.

Qual música marcaria este momento? Se fosse pela leoa que Petite fitou seria “Circle of Life”, do filme “Rei Leão”. Mas, tamanha a disparidade e outras tantas questões prementes que continuam sem resposta, diante das múltiplas realidades que eu vi, não há como não continuar se indagando se os homens serão fortes o suficiente para se respeitarem e aceitarem um amor tão simples, aquele amor ao próprio semelhante; por isso fiquei com “Ordinary Love” do U2, a canção em homenagem à Mandela, que nos insiste em lembrar que: “'Cause we can't fall any further/ If we can't feel ordinary love/ And we cannot reach any higher/ If we can't deal with ordinary love”.

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