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Chipre – da Bactéria à Paz do Mar de Afrodite.


Ruínas no Chipre

Às vezes, o inesperado nos desconcerta. Foi assim com o Chipre, que me veio numa busca por acolhimento, praia, temperatura amena e preço coerente para a semana do Ano Novo de 2018. Ou melhor, o Chipre me surgiu porque eu precisa escapar de uma somatização, que havia se traduzia numa sinusite que já durava mais de três meses.


Sim, eu sou uma pessoa que somatiza. E para pessoas como eu – que ao olho nu transmitem tanta serenidade e calmaria – reconhecer que, por trás dessa aparente tranquilidade, reina uma imponderável ansiedade, que se reflete em sinusites crônicas, refluxos e rosáceas já é uma evolução.

O diferente dessa vez foi que até agora eu ainda não consegui me decifrar, ou seja, não sei exatamente a causa daqueles sintomas que a própria medicina nem sempre consegue explicar a origem. Aprendi pragmaticamente e com o passar de algumas décadas, que num processo de recuperação é muito importante saber o porquê daquela queimação no estomâgo que não te deixa dormir, ou o porquê daquela tosse, roquidão ou nariz entupido que te perseguem por semanas sem fim. Mas, por agora eu não sei, pode ter sido o “todo” da experiência sabática que desandou em mim, pode ter sido o “nada” da ausência de pressão do mundo exterior, pode ter sido que viver um “plano B” um atrás do outro também faça os seus estragos...


Enfim, a somatização sabática foi enauseante, principalmente, porque em terras lilliputianas percebi que a medicina parece não compreender o sentido abrangente de certos sintomas físicos. Tudo começou em setembro, quando depois de mais de 15 dias de cuidados caseiros, eu decidi procurar um pronto atendimento numa manhã em que eu já havia acordado febril, após uma noite extenuante. Primeira coisa: exame de sangue. Resultado: infecção bacteriana. Prescrição: 5 dias de antibiótico. Eu senti o temor reverencial da médica ao me receitar o antibiótico, era quase como se ela estivesse profanando um templo sagrado. E eu estava tão mal, que me apeguei àquilo tudo como se fosse a minha tábua de salvação. Mas, não foi assim. Uma semana depois daqueles míseros comprimidos, eu estava ainda pior.


Outubro veio e foi embora, mas minha sinusite continuou me pressionando cada vez mais. Quando novembro surgiu, eu resolvi procurar o chamado médico de família. Primeira coisa: exame de sangue. Resultado: infecção bacteriana. Prescrição: paliativos para o nariz entupido e exames de sangue semanais. Depois que eu relatei à nova médica que 5 dias de antibióticos não tinha sequer feito cócegas à minha doce amiga bacteriana, ela decidiu que meu corpo tinha que dar conta do recado de alguma forma e pronto. Com isso, foram sucessivas semanas de picadas e resultados infecciosos. Eu não me lembro de ter feito tanto exame de sangue assim na minha vida toda. E, eu cada vez pior, cada vez mais alérgica, tossindo, expelindo muco 24hs por dia, me exaurindo em noites sem dormir. E a médica me falando para manter a calma, que a vitamina C e o zinco iriam dar conta do recado um dia...


Quando dezembro chegou junto do frio e dos dias curtos e cinzentos, eu olhei para dentro de mim e me convenci que eu precisava quebrar aquele ciclo. Foi assim que o Chipre me surgiu: eu queria praia, comida grega, céu azul. Eu queria ver o berço de Afrodite! Embarcamos um dia depois que o Bom Velhinho visitou a nossa casa. Seguimos eu, Didier, Petite, Didier Pai, uma família de amigos fabulosos, a tonelada de remédios paliativos e a minha afável, que quase me levou à loucura durante o vôo.

Praia em Lárnaca no Chipre

Ficamos em Larnaca, num hotel à beira da praia e, para uma Europa invernal, ter tido 18 graus celsius de temperatura e céu azul foi um privilégio. Eu pude colocar meus pés no mar e caminhar na areia pedregosa, como quem estava lavando a alma toda.

Praia no Chipre

Muitas massagens ayuvérdicas depois, várias saunas com piscina aquecida, seguidas de caminhadas na esteira, acompanhadas por brunchs e jantares com peixes mergulhados no azeite de oliva e no queijo halumi, numerosos bate-papos entre amigos, seguidos por 8 horas de sono diários, leituras densas e vista do pôr do sol da sacada... isso tudo foi demais para minha bactéria, que não suportou mais me ver tão em paz e em harmonia, e me deixou sem sequer me dar adeus. Ela partiu silenciosa e magoada, e para mim foi cômico acordar certo dia sem ter que gastar meia caixa de lenços de papel para tentar respirar.

Por isso, eu sou grata ao Chipre. Mas, também me sinto um pouco em dívida com aquela ilha, porque eu estava tão mergulhada em mim mesma, que talvez não tenha explorado aquele lugar como deveria. Fiz minguados passeios turísticos por lá, mas o pouco que fiz foi mágico. Fui com Didier, Petite e a família que nos acompanhava à um vilarejo chamado Athienou (http://larnakaregion.com/directory/product/athienou), onde acompanhamos a fabricação artesanal do queijo halumi, e aprendemos sobre o funcionamento de um moinho de farinha.

Em Athienou também havia um diminuto museu chamado Kallinikeio (http://www.athienoumuseum.org.cy/english/), todo repleto de obras eclesiásticas, arqueológicas e de memórias de quando o Chipre foi invadido pela Turquia e se tornou um país dividido, em 1974. Para chegarmos a esse vilarejo fomos em grupo guiado num transporte público, e no tédio de quase uma hora de viagem me lembro de um senhor chipriota que, quando soube que eu era brasileira, ficou muito encantado, afinal, esse não era um destino muito comum para brasileiros; conversamos sobre as dificuldades econômicas dos nossos dois países, descobrimos que nós dois já havíamos morado nos Estados Unidos, e isso tudo – essa insensatez vivida por ambos os países e as lembranças de um terceiro país – fez a viagem passar mais rápido.

Em Paphos, conheci as ruínas de casas greco-romanas cujos chãos estavam repletos de mosaicos (https://www.atlasobscura.com/places/the-mosaics-of-paphos). Lembro-me bem do marulhar do vento, da imensidão azul do mar, do prazer de caminhar em meio ao sol e à poeira, de sentir o corpo aquecido até deixar as bochechas rosadas.

Passei por Petra tou Romiou onde, ao que parece, Afrodite teria nascido a partir da espuma do mar (http://www.visitcyprus.com/index.php/en/discovercyprus/rural/sites-monuments/item/732-birthplace-of-aphrodite-petra-tou-romiou).

Também em Larnaca, gostei de percorrer uma avenida à beira-mar numa tarde de sol tímido, e de observar a arrebentação das ondas, e de depois seguir para ver uma vista do que partia de dentro de um castelo medieval (http://larnakaregion.com/directory/product/larnaka-medieval-castle), e de acompanhar o pôr do sol no caminho da igreja de arquitetura bizantina, que supostamente guarda os restos mortais de São Lázaro (http://larnakaregion.com/directory/product/agios-lazaros-saint-lazarus).

Fiquei enternecida ao espreitar o brilho no olhar de Didier Pai, quando ele retornava diariamente dos mergulhos ao Zenobia (https://www.cyprusisland.net/cyprus-shipwrecks/zenobia-shipwreck), afinal, enquanto eu me livrava da bactéria, era bom saber que todos estavam encontrando o seu momento holístico.


Vou me lembrar como foi bizarro o fato de que na noite do Ano Novo nós éramos a única família a usar branco no jantar – levamos essa tradição brasileira para Larnaca! Bem na virada, sim, fomos à praia mesmo com o vento frio; eu não ousei pular as 7 ondas, mas fiquei ali por um tempo, vendo as alvas espumas sob o brilho da lua, tentando advinhar o que me aguardava e pedindo calma à mim mesma.


Depois, voltamos para o lobby do hotel, onde todos dançavam em roda, no estilo grego, com lenços alvoroçados na mão. Um turista me puxou pelas mãos, era o ímpeto da passagem do ano, aquele vácuo de esperança nos primeiros minutos de 2018... mas, eu não o segui naquela dança... tive preguiça de ser simpática, estava bem sendo eu mesma depois da partida da bactéria.


Faltaram muitas coisas para serem vividas e aprendidas no Chipre. Sim, eu preferi dormir ao invés de ir conhecer Nicosia, onde existe a buffer zone que ainda divide a ilha entre a parte turca e grega (https://www.huffingtonpost.com/constantine-tzanos/international-justice-the_b_9934090.html), e sedia uma operação de manutenção paz da ONU (https://peacekeeping.un.org/en/mission/unficyp). Foi uma falta grande para quem estuda direitos humanos. Mas, naquele período eu não era “Lucia, a pesquisadora”, eu era apenas alguém que brigava contra eu mesma há muitos meses e que precisava me acalmar.


Ficou, então, a promessa de um dia voltar, não para escapar da somatização, mas para viver a história e ouvir as pessoas. Na última manhã antes de ir embora, eu ainda fui caminhar na solidão da praia, e enquanto ouvia música e desafiava a água gelada que batia nos meus pés, um outro senhor chipriota me parou, conversou, sugeriu passeios, afirmou que a água era quente para além de onde as ondas nasciam, mostrou-se feliz por simplesmente estar ali naquele momento. Estava completo o meu ciclo de acolhimento, de contemplação e de saúde.

Quando voltei, por muitos e muitos dias, eu continuei naquele estágio de paz, de que nada poderia me perturbar. E a todo anoitecer e alvorecer, eu pedia que aquela quietude do mar, que foi o berço de Afrodite, me acompanhasse infinitamente.


Então, o que cantar para essa memória? “A Cura”, uma música de 1988, do álbum “Toda Forma de Amor”, em que Lulu Santos nos lembrava: “Enquanto isso/ Não nos custa insistir/ Na questão do desejo/ Não deixar se extinguir/ Desafiando de vez a noção/ Na qual se crê/ Que o inferno é aqui/ Existirá/ E toda raça então experimentará/ Para todo mal, a cura...”.




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