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Pode a Primavera Romper a Aspereza?

Existem coisas que eu aprendi a valorizar nesses tempos sábaticos? Sim, uma delas: eu passei a ter tempo suficiente para olhar o mundo ao meu redor. Afinal, os ponteiros do relógio aqui são precisos e ferrenhos; mas para mim não existem tantas cobranças cotidianas. Na maioria dos dias, eu sou a senhora do meu tempo. Esse é um poder para o bem e para o mal! Pois, a procrastinação é uma arte desdenhosa e sorrateira e, às vezes, o tal do ócio criativo nem sempre apresenta resultado. Mas, enfim, nesse meu novo modo de vida eu tenho tempo para observar, para me descobrir e me surpreender com situações tão inusitadas quanto ternas em Lilliput.


Dias atrás sucedeu um desses momentos inexplicáveis. Era começo de primavera, o sol passou a apontar bem mais cedo e a se pôr muito mais tarde, os 18 graus de temperatura surgiram para ficar... E, então, teve início, uma vez mais, aquela paranóia de encher as casas e as varandas de mil flores... De repente, todos os cidadãos de Lilliput se transformam, e querem viver como Monet em seu jardim de Giverny. E a competição é acirrada! No ano passado, eu cravei minha bandeira: jardim dá muito trabalho, são apenas 3 meses de sol, depois vem o frio e a neve e queimam todas as plantas, lá se foi o dinheiro e o tempo, tudo, gasto à tôa!


Flores de primavera no jardim

Seguindo esse lema, deixei o matagal tomar conta de tudo e pronto! Quando até o matagal morreu de insolação, meu coração arrefeceu-se um pouco. Atendi aos apelos de Didier, que chegou em casa com um vasinho de girassol que ele havia semeado na escola, limpei os vestígios de mato e lancei as sementes... E, então, operou-se a magia: as plantas nasceram, verdejaram, floriram... e eu recuperei a confiança naquela tal estória de ter o dedo verde para cultivar as plantas.


Chegou o inverno, sim. Os primeiros granizos, misturados com flocos de neve, a apatia do sol, as chuvas torrenciais, enfim, foram todos inclementes com as minhas jardineiras. Eu me silenciei e as vi secarem uma a uma. Mas, depois me ocorreu um sentimento pacificador: é o ciclo da vida. Logo, o sol não tardará e, mesmo que sejam por meses efêmeros, vale a pena sim ver as cores, aspirar os aromas, sentar-se ao lado delas e apreciá-las.



Primavera na Europa


Assim, em abril desse ano, eu comecei a seguir a tal da idolatria das flores. Fui vencida por Lilliput! Numa manhã de sol, depois da ginástica, eu me sentia cheia de energia para limpar de novo as floreiras e semear. Eu estava lá com os meus botões e minhas luvas, curtindo a luz solar, quando um dos meus vizinhos passou pela varanda. Deu-me a impressão que ele estava satisfeito porque, enfim, a brasileira resolveu a seguir as regras do lugar.


O senhor de idade avançada com cabelos brancos e ralos parou e iniciou, de pronto, uma conversa em francês. Coisa que já é bem rara por aqui. Depois dos cumprimentos, perguntou sobre a família, interrogou-me sobre a minha última viagem (porque tinha notado que a casa havia ficado sem movimento por vários dias), disse que também gostava muito da Itália. Eu perguntei de onde ele estava vindo, ele mostrou que tinha ido cortar o cabelo, contou onde ficava o barbeiro... E logo veio o inesperado: uma forte onda de tremores tomou o seu corpo, a fala dele se perdeu, eu vi a rigidez muscular da sua face enevoando aquele olhar acolhedor. Eu receio que seja mal de Parkinson.


Acostumada com as degenerações da velhice, eu não me intimidei, falei para ele se sentar um pouco e disse que era normal, que iria passar já. E engatei outras falas até que ele se reestabelecesse. Perguntei se estava se sentido melhor, ele respondeu que sim, que era a tal da doença e que ele tinha andado demais naquele sol de primavera. Então, se foi, subiu as escadas que levavam até a sua casa, e eu continuei cavucando o meu solo e lançando as minhas sementes...


Cultivo de flores na primavera

Quando o sino da igreja avisou que era meio-dia eu ainda tinha muito o que fazer na varanda, e estava tão dedicada naquela tarefa que nem pensava em parar para almoçar. Foi quando a campainha tocou secamente na minha porta. Pensei que seria alguma entrega, mas era o meu vizinho novamente. Agora, ele já estava todo refeito do susto, traja bermudas e uma blusa azul clara de mangas que destacavam as bochechas vermelhas e as rugas profundas da face. Assustei, pois não é nada comum em Lilliput que algum morador venha bater a sua porta (a não ser que seja para reclamar do seu barulho). E ele, todo formal e se sentindo pouco confortável, me falou com veêmencia que já passava do meio-dia, que eu tinha ficado a muito tempo no sol cuidando das plantas, que devia estar com fome, então, ele estava me convidando para ir almoçar na casa dele, pois a sua esposa já havia preparado o almoço.


Esse foi o convite mais espontâneo que um Lilliputiano me fez até hoje e me surpreendeu muito, porque é lugar comum relatar a frieza habitual das pessoas por aqui. Todo mundo já ouviu dizer isso, e eu concordo, sim, as pessoas por aqui têm um distanciamento inequívoco que beira uma certa rudeza. Eu faltei à todas as palestras sobre adaptação à vida de expatriado, então, não me preparei para o áspero e assertivo espírito local. Fui aprendendo com as experiências cotidianas, e aos poucos passei a não me importar e, até a fazer ironia com a falta de habilidade social e empatia da população. Então, foi com muita brandura e esperança de um futuro mais cheio de solidariedade que eu recebi o convite desse senhor.


A surpresa foi tamanha que eu gaguejei, me senti muito insegura, passou rapidamente pela minha cabeça: “Meu Deus! Se eu aceitar como é que vou arrumar assim tanto assunto ameno no decorrer do almoço? Meu Deus, e se eu não gostar da comida vou ter que comer sorrindo!”... Depois de segundos de “e, se...”, eu retomei o prumo e disse “não”. Era demais para mim! Eu ainda tentei me justificar dizendo que tinha comida pronta em casa, que iria almoçar daqui a pouco. E, então, ainda meu veio à cabeça aquele comentário bem brasileiro que nós fazemos para que a promessa não seja cumprida: “deixa para um outro dia” ou “dá próxima vez que eu fizer uma comida brasileira, eu convidarei vocês”.


Para finalizar o meu constrangimento e total despreparo ainda falei: “qualquer dia desses, venham tomar um cafezinho aqui em casa”. No que o meu vizinho completou: “cafezinho não, mas piña colada neste calor eu aceito”. Que encruzilhada: quem, em sã consciência, deixaria um ancião com mal de Parkinson tomar piña colada? Caso encerrado. Eu não!


E, assim, seguimos nesta primavera. Descobri que não tenho o dedo tão verde quanto eu supunha. Em muitas floreras só brotaram ervas daninhas, que foram aguadas e adubadas incessantemente por quase um mês, até quando minha paciência se esgotou, e num acesso de fúria eu as arranquei todas, e fiz nova semeadura. Agora, é esperar que outras plantas desabrochem, enquando por todos os lados é primavera em explosão de tons.


Mas fica a dúvida: essa franqueza e o rompimento dessa rudeza são efeitos desses tempos de luminosidade ou sou eu uma pessoa de sorte?


Pouco tempo depois, descendo a escadaria num atropelo de ir buscar as crianças na escola, me encontrei com uma outra vizinha de longos cabelos brancos e uma nova conversa em inglês se irrompeu... começou com o interrogatório usual da vida alheia, passou pelos lugares em que eu morei no Brasil, caminhou pela última visita da minha sogra, aprofundou-se pela felicidade dos meus filhos, pela sorriso cativante e pelo choro de Petite, seguiu pela crítica ao mal comportamento de um outro vizinho... e tanto foi que eu – a dita senhora do meu tempo – acabei chegando atrasada para pegar os pequenos na escola...




Para lembrar dessa severidade e de como romper comportamentos nos impõe muito desconforto, escolhi uma banda do lugar e que, inclusive, canta no dialeto local e até (imagine!) fala palavrão. O clip de “Gib e Figg” foi gravado pelo “Les Touristes” em plena Aeschenplatz, em meio a um dos cruzamentos de bonde, carros, bicicletas e pessoas mais atribulados daqui. É perturbador ver o incômodo da banda e das pessoas ao seu redor, o que demonstra que, com ousadia, atitudes podem ser metamorfoseadas como borboletas.




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